terça-feira, 9 de setembro de 2008

Carta ao Pai em Trier (Karl Marx)

Querido pai,

Há momentos na vida que, tais quais marcas fronteiriças, colocam-se diante de um período concluído, apontando, porém, ao mesmo tempo, com determinação, para uma nova direção. Em um tal ponto de transição, sentimo-nos forçados a contemplar o passado e o presente com os olhos de águia do pensamento, a fim de tornarmo-nos conscientes de nossa posição real.

Em verdade, a própria história do mundo gosta desse olhar retrospectivo e desse investigar-se, o que freqüentemente, confere-lhe, então, a aparência de retrocesso ou estagnação, enquanto que a história, ela mesma, apenas se lança em uma poltrona, para entender a si mesma, penetrando, espiritualmente, em sua própria atividade, qual seja a atividade do espírito.

Em tais momentos, porém, um indivíduo torna-se lírico, pois toda metamorfose é, em parte, um canto de cisne e, em parte, a abertura de um novo grande poema que aspira a adquirir uma postura em cores brilhantes, que estão, porém, ainda desbotadas.

Contudo, gostaríamos de erigir um monumento em homenagem àquilo que já vivenciamos, para que readquira em nosso sentimento o lugar que perdeu para as nossas ações. E onde é que poderia encontrar-se para isso um santuário mais estimado, se não fosse no coração do pai, o juiz mais moderado, o partícipe mais íntimo, o sol do amor, cujo fogo ardente é sentido no centro mais cardeal de nossas pretensões !

Como poderiam muitas coisas que são odiosas e censuráveis receber melhor compensação e perdão, se não surgissem como uma manifestação de um estado essencialmente necessário das coisas ? Como poderia o jogo do acaso, freqüentemente desfavorável, bem como o erro espiritual, ser substraído à acusação de ser devido a um coração perverso ?

Portanto, se, agora, no fim de um ano aqui transcorrido, lançar um olhar sobre as condições, havidas durante esse tempo, a fim de responder, meu querido pai, à sua carta infinitamente querida, procedente de Ems, permito-me contemplar minhas relações, tal como contemplo a vida em geral, enquanto expressão de um agir espiritual que se conforma em todas as direções, na ciência, na arte e nas questões privadas.

Quando vos deixei, surgiu para mim um novo mundo, o mundo do amor e, em verdade, no início, do amor embriagado de saudades e de esperanças vazias.

Até mesmo a viagem à Berlim, que, por sinal, poderia ter-me encantado ao extremo, despertando-me a observação da natureza, abrasando-me o prazer de viver, produziu-me frieza, deixando-me visivelmente de mau humor, pois as rochas que via não eram mais grosseiras, não eram mais impudentes do que os sentimentos da minha alma, as amplas cidades, não mais vivazes do que o meu sangue, as refeições dos albergues, não mais sobrecarregadas, não mais indigeríveis do que os pacotes de fantasias que levava e, finalmente, a arte, não tão bela quanto Jenny.

Chegando à Berlim, rompi todos os laços que haviam existido até então, passei a fazer, com dissabor, raras visitas e procurei afundar-me na ciência e na arte. Em conformidade com a situação espiritual de outrora, a poesia lírica havia de constituir, necessariamente, o meu primeiro projeto, ao menos o mais agradável e mais próximo. Porém, esta era puramente idealista, tal como meu posicionamento e todo o desenvolvimento até o presente momento o demonstraram. Um reino do além, de igual forma distantemente situado - tal como o meu amor -, passou a ser o meu céu, a minha arte. Todo o real tornou-se vago e tudo o que é vago não encontra nenhuma fronteira.

Ataques ao presente, sentimento impactado de modo amplo e informe, nada de natural, tudo construído a partir da lua, o pleno oposto daquilo que existe e daquilo que deve ser, reflexões retóricas em vez de pensamento poético, talvez, porém, um certo calor do sentimento e da luta pelo ímpeto caracterizam todas as poesias dos três primeiros volumes, por mim enviados e recebidos por Jenny. Toda a extensão de uma ansiedade que não conhece nenhuma fronteira manifesta-se em diversas formas e faz da “poesia” uma “extensão”. Então, a poesia podia e devia ser apenas um acompanhamento.

Tive de estudar a Ciência do Direito e senti, sobretudo, o incitamento de bater-me com a Filosofia. Ambas foram de tal maneira relacionadas que tratei, em parte, Heineccius, Thibaut e as fontes de modo puramente acrítico, de modo meramente escolástico - assim, p.ex., traduzi os dois primeiros livros das Pandectas para o alemão -, e, em parte, procurei fazer passar uma Filosofia do Direito pelo domínio do Direito.[2]

À guisa de introdução, prefaciei algumas proposições metafísicas e conduzi essa obra infeliz até o Direito Público, de modo a elaborar um traballho de aproximadamente 300 páginas.[3]

Aqui, surgiu, sobretudo, de modo pertubador, o mesmo antagonismo, existente entre ser e dever ser, próprio do idealismo, tornando-se a matriz da divisão subseqüente, irrecuperavelmente incorreta.

Texto na íntegra: http://www.scientific-socialism.de/KMFEDireitoCAP4Port.htm#_ftn4

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