Gey Espinheira(para Arnaldo Xavier)
Dedicamos um dia à morte, não à morte de todos os dias que o profissionalismo das funerárias e dos coveiros enfrenta, dos mortos avulsos e uns tantos anônimos, mas à morte de todos, universal.
O lugar da morte é o cemitério. Em um mesmo cemitério persiste a hierarquia dos mortos quando em vida. Os mortos jamais são iguais, ainda que ao pó retornados, são o que foram em vida na expressão de suas representações na arquitetura de seus túmulos. Mas há os cemitérios para os diferentes, ou seja, cemitérios de ricos e cemitérios de pobres; mas para além dessa diferenciação, em um mesmo cemitério, como em uma cidade, há lugares centrais e periféricos.
No tempo em que se morria - e aqui quero dizer a morte trágica - desenganado pelos médicos, ou de modo abrupto por ataque cardíaco, morrer do coração, como se dizia; ou ainda de acidente, a morte tinha um significado especial. Era morte esperada ou surpreendente a desorganizar a família, os amigos, os vizinhos, enfim, a casa inteira, uma rua ou mesmo uma cidade. Morte sentida, inconsolável, “esconsolável consolatrix consoadíssima...”.
Hoje, a morte é clínica. A tecnologia vai às últimas conseqüências, invade pelos orifícios do corpo com sondas, tubos; perfura o corpo e o invade e máquinas, superórgãos, mantêm a vitalidade enquanto se espera que o corpo doente ou agredido se recupere. No caso, a morte é clínica. O organismo não respondeu, não suportou. O corpo, também máquina sujeita a reparações, e eis que a mecânica já não dá conta da vida. Morte sentida, sim, mas morte racional, burocrática, explicada nos mínimos detalhes. Morte sem mistério.
O ataque do coração é agora o enfarto. O enfarto não tem a mesma dramaticidade do ataque, do arrebentar do coração vítima de um ataque, do acometimento de um mal súbito. Súbito, abrupto! Ser atacado! Sofrer um ataque! E eis que, indefeso e desavisado, sobreveio o ataque do coração. Quão diferente de saber que teve um enfarto, um enfarte. Há mais dignidade quando se morre de um ataque do coração do que de um enfarto.
A medicina banalizou a morte e a fez calculável, previsível, de tal modo que quem morre é responsável por sua própria morte e deve ser recriminado por isso. Não se cuidou! Não ia ao médico! Etc. As mortes surpresa, as mortes homeopáticas de doenças incuráveis... A “dama branca”: “Por uma noite de muito frio/ A Dama Branca levou meu pai” (2). Como eram heróicas as mortes de antigamente! Morria-se em casa, na própria cama, como em um verso de Lorca. A morte era um ritual da vida e não um exercício médico. “Tudo é milagre/ Tudo, menos a morte. / Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres”. Mas não é da morte que queremos falar, mas do lugar dos mortos, os cemitérios.
RICOS E POBRES - Clarival do Prado Valladares é quem nos guia pelos cemitérios de Salvador: Campo Santo, construído em 1841, onde se encontram túmulos de pessoas ilustres e esculturas de renomados artistas, mas destaco o comentário de Clarival: “Todavia, para além dessas quadras e dos grandes muros de carneiros, começam as quadras de enterro de pobre cercado de pitangueiras e descendo a encosta até a grota e o bambuzal.
Nessas, o Campo Santo assume um espírito diverso, comparável às ribanceiras das Quintas (Cemitério das Quintas dos Lázaros), onde as cruzes das covas rasas parecem roçado de mandioca”.
Os cemitérios são erguidos em elevações, talvez a busca dos céus, metáfora topográfica da fuga do abismo. “A antiga Quinta dos Lázaros, propriedade dos primeiros jesuítas, tinha um altiplano de morro, suficiente e muito adequado para se fazer uma verdadeira necrópole, nos conceitos sanitaristas da época” (ibid. p.115). Na semeadura do Cemitério dos Humildes de São Francisco está a de Aninha, “a grande ialorixá do candomblé do Retiro de São Gonçalo, o Axé do Opô-Afonjá”, e continua Clarival, referindo-se ao túmulo: “na quadra da Irmandade de São Benedito, próxima às dos ciganos longevos e de frades franciscanos de nome alemão, com inscrição sofisticada que em nada permite identificá-la em sua notável personalidade religiosa”:
“Aqui descança/ Eugênia Anna Santos/ A 13-7-1869/ A 3-1-1938/ Amastes desmedidamente aos teus/ E as saudades que/ Deixaste não terão mais fim./ Uma prece.”
A poética da morte é a da igualdade dos mortos. Nenhuma divergência quanto à nacionalidade, sexo, idade ou crença. Os mortos são absolutamente iguais como deveriam ser os vivos se a vida não os envaidecesse tanto, fazendo da distinção o valor maior; mas esta é uma outra história...
Clarival vai mais além: “A importância social das profissões artesanais se demonstra no espírito de classe que fez erigir nos cemitérios da Quinta dos Lázaros imponentes mausoléus coletivos, por exemplo: o da Sociedade Montepio dos Artífices, da Sociedade Bolsa de Caridade, da Associação Tipográfica, do Montepio dos Artistas, e muitos outros, ao jeito e aparência de velhos sobrados, uniformes e serenos, de platibanda ou de beiral, alguns avarandados, outros com jardim de frente gradeado, guardando seus carneiros como janelas fechadas das casas antigas de Salvador”.
Mas vamos mais adiante neste passeio pelas ruas, avenidas e quadras das cidades dos mortos. Vamos, com Clarival, pelos cemitérios de pobres: “o cemitério de pobre continua paisagem. Paisagem de leiras marcadas de cruzes, pintadas e inscritas...” (ibid. p. 130), algumas, como nos lembra João Cabral de Melo Neto: “... as caídas cruzes que há/ são menos cruzes que mastros/ quando a meio naufragar”.
Clarival nos ensina a diferença entre cemitério de rico e cemitério de pobre: “Cemitério de pobre não tem inscrições complicadas, brazões melancólicos, jactância catedralesca. Tem legendas sem gramática, com grafia de S ao contrário, com H onde não deve e sem H onde devia”. (Ibit. P. 131).
“Maria Jaz/ De Antonio Esposa/ Benedito Anjo/ Sem Hacordar/ Severo Muitos Filhos/ Lhe Tomam a Benção/ Pureza Mãe/ De Irene Uma Flor”
Licença poética na morte e para a morte, o sentimento humano puro e simples, como na saudade infinita do poema que lembra a menina morta:
“Rosalva Rosendo dos Santos/ De Rosendo e Rosa dos Santos/ Nascida em Salvador/ De Todos os Santos”.
Infelizes os mortos sem sepultura, invisíveis e silenciosos. Os que têm pátria, semeados em lugar conhecido e seguro, estão sempre a espera e sempre nos dizem coisas quando estamos com vontade de morrer.
Um comentário:
"...É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender..."
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