segunda-feira, 23 de março de 2009

FOLHA DE SÃO PAULO, 14-03-2009, INCOERÊNCIA RELIGIOSA

Dráuzio Varela
Os males que a igreja causa em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicosAOS COLEGAS de Pernambuco responsáveis pelo abortamento na menina de nove anos, quero dar os parabéns. Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina.

Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos..Não se deixem abater, é precisoentender as normas da Igreja Católica. Seu compromisso é com a vidadepois da morte. Para ela, o sofrimento é purificador: "Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porquevosso será o reino dos céus", não é oque pregam?
É uma cosmovisão antagônica àda medicina. Nenhum de nós dariatal conselho em lugar de analgésicospara alguém com cólica renal. Nossocompromisso profissional é com avida terrena, o deles, com a eterna.Enquanto nossos pacientes cobramresultados concretos, os fiéis que osseguem precisam antes morrer parater o direito de fazê-lo..Podemos acusar a Igreja Católicade inúmeros equívocos e de crimescontra a humanidade, jamais deincoerência. Incoerentes são os católicos que esperam dela atitudesincompatíveis com os princípiosque a regem desde os tempos da Inquisição.
Se os católicos consideram o embrião sagrado, já que a alma seinstalaria no instante em que o espermatozoide se esgueira entre osporos da membrana que reveste o óvulo, como podem estranhar que umprelado reaja com agressividade contra a interrupção de uma gravidez,ainda que a vida da mãe estuprada corra perigo extremo?.O arcebispo de Olinda e Recife nãocometeu nenhum disparate, agiuem obediência estrita ao Código Penal do Direito Canônico: o cânon 1398 prescreve a excomunhão automática em caso de abortamento.
Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os católicos sempre silenciaram diantedos abusos sexuais contra meninos,perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Alémda transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contraos atos criminosos desses padresque nós, ex-alunos de colégios católicos, testemunhamos?.
Não há o que reclamar. A políticado Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores.Em nota à imprensa a respeito doepisódio, afirmou Gianfranco Grieco, chefe do Conselho do Vaticanopara a Família: "A igreja não podenunca trair sua posição, que é a dedefender a vida, da concepção atéseu término natural, mesmo diantede um drama humano tão forte,como o da violência contra umamenina". Por que não dizer a esse senhor que tal justificativa ofende a inteligência humana: defender a vida daconcepção até a morte?
Não seja descarado, senhor Grieco, as cadeiasestão lotadas de bandidos cruéis e deassassinos da pior espécie que contam com a complacência piedosa dainstituição à qual o senhor pertence..Os católicos precisam ver a igrejacomo ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais,dogmas e cânones. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios daspessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa.
A esperança de que a instituiçãoum dia adote posturas condizentescom os apelos sociais é vã; a modernização não virá. É ingenuidade esperar por ela..Os males que a igreja causa à sociedade em nome de Deus vão muitoalém da excomunhão de médicos,medida arbitrária de impacto desprezível. O verdadeiro perigo estáem sua vocação secular para apoderar-se da maquinária do Estado, pormeio do poder intimidatório exercido sobre nossos dirigentes.
Não por acaso, no presente episódio manifestaram suas opiniõescautelosas apenas o presidente daRepública e o ministro da Saúde.Os políticos não ousam afrontar aigreja. O poder dos religiosos não éconsequência do conforto espiritualoferecido a seus rebanhos nem defilosofias transcendentais sobreos desígnios do céu e da terra, elederiva da coação exercida sobre ospolíticos.
Quando a igreja condena a camisinha, o aborto, a pílula, as pesquisascom células-tronco ou o divórcio,não se limita a aconselhar os católicos a segui-la, instituição autoritáriaque é, mobiliza sua força políticadesproporcional para impor proibições a todos nós.[i]
http://www1. folha.uol. com.br/fsp/ ilustrad/ fq1403200923. htm

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